terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

O Advento da Fonética

(Histótia da Lingüística, Joaquim Mattoso Camara Jr.)

Em meados do século XIX, a lingüística deu um grande passo com o advento de um estudo completo de fonética. Vimos que o conhecimento fonético não fora forte entre os gregos. Sua conexão com a linguagem tinha sido através da escrita. Vimos também que é a escrita que chama a atenção aos homens para a linguagem e os faz para para observá-la, uma vez que a atividade da fala é espontânea, o que a faz parecer tão natural como as outras atividades corporais, tais como o andar.

Os maravilhosos resultados obtidos pela lingüística comparativa indo-européia estimulou a investigação lingüística nos mesmos moldes no âmbito das línguas não indo-européias. Havia uma profunda impressão de que todas as línguas do mundo poderiam estar sujeitas a um estudo histórico comparativo semelhante.

(...)

O método histórico-comparativo não foi, em muitos casos, claro e firme. Em outros casos, na realidade, foi abandonado por um modo de pesquisa empírico. Os lingüistas treinados na técnica do indo-europeu não se sentiam atraídos a estudar línguas e grupos de línguas nos quais eram incapazes de aplicar seus métodos rigorosos de investigação, de modo que este estudo foi deixado a missionários e antropólogos.
Alguns deles, é verdade, tinham um certo preparo lingüístico; mas tendiam a encarar a linguagem como qualquer outro fato antropológico. Dessa forma a lingüística dissolveu-se na antropologia e perdeu o aspecto característico de uma ciência particular; que o estudo histórico da linguagem lhe houvera atribuído desde o começo do século XIX.

Com o passar do tempo, isto provou ser benéfico, porque desenvolveu uma nova abordagem liberta da visão demasiadamente estreita que considerava a lingüística como uma disciplina meramente histórico-comparativa.

(Capítulo XV - Estudos não-indo-europeus. Gramáticas comparativas. A síntese da Comparação Lingüística, Histótia da Lingüística, Joaquim Mattoso Camara Jr.)

Foi, entretanto, Forchhammer; entre os foneticistas do começo do século XX, que deu um passo à frente, de maneira mais decidida nesse campo ainda novo. Faz diferença, na realidade física e fisiológica, entre "sons vocais" (Sprachlaute) e sons da transição ou glides (Übergangslaute); acentua também que, para qualquer som vocal, há diferentes colorações sonoras (Lautschattierung). O própósito lingüístico, de acordo com ele, superpõe-se a todas estas diferenças físicas e, na língua, encontramos um grupo de sons representados por uma letra (Buchstabenlautgruppen). Em outras palavras, Forchhammer acha que as letras na linguagem escrita representam a síntese de vários sons, que são distinguidos uns dos outros pelos falantes e ouvintes comuns. Veremos agora como este conceito se encontra na base de uma nova abordagem aos sons vocais.

O primeiro estudioso a dar um passo firme nesta nova abordagem foi o polonês Jan Baudouin de Cartenay, cujo principal trabalho no fim do século XIX se intitulava 'Investigação para uma Teoria das Alternâncias Fonéticas'. Courtenay, que era professor de Lingüística na Universidade de São Petersburgo, admitia a distinção entre os sons que eram realmente emitidos e os que falantes acreditam fazê-los e os ouvintes julgam ouvir. Os primeiros se constituem no objeto da investigação da fonética; mas os últimos tinham um conteúdo lingüístico, umas vez que é por meio destes sons "pretensamente" emitidos que a comunicação se realiza. Chamou a esses sons
"intencionais" de "fonemas" em oposição àqueles emitidos realmente, que são os sons vocais da fonética. O termo "fonema" já existia na Grécia Antiga, com o significado de "enunciação" ou "voz". Este termo foi sugerido a Baudouin por seu notável discípulo
e colaborador Kruszewski, que é o autor de um tratado sobre 'Mudanças Fonéticas'.

Baudouin definia o fonema como "a idéia de um som vocal" e advogava uma análise psicológica a fim de se chegar a ele, partindo do nível da fonética e seus sons vocais. Isto quer dizer que atribuía o som vocal à física e o fonema à psicologia.

(...)

Trubetzkoy, que tinha sido aluno de Baudouin em São Petersburgo, era tanto um europeísta quanto um especialista em línguas caucasianas. Relacionado com ambos os estudos lingüísticos fez ele trabalho de valor inestimável. Já vimos como contribuiu para as novas abordagens à Lingüística Comparativa. Mas sua contribuição mais importante e notável foi sua investigação teórica a respeito do novo conceito de
"fonema", no qual, juntamente com seus companheiros, chegou a uma abordagem completamente diferente da que Baudouin apresentara.

Forçado a deixar a Rússia depois da Revolução Comunista de outubro de 1917 (era um príncipe, primo do czar), estabeleceu-se na Áustria e lecionou em Viena e Praga. Nesta última cidade foi criado um Círculo Lingüístico (1926) com ele e seus amigos e colegas russos acima mencionados e estudiosos tchecos tais como Vilhelm Mathesius, que lançou a idéia de círculo lingüístico, B. Trnka e J. Vachek; o Círculo publicou anualmente um volume das atas sob o título francês de 'Travaux du Cercle Linguistique de Prague', com artigos escritos em francês, inglês e alemão. O primeiro volume destes 'Travaux' data de 1929 e a série foi interrompida logo depois de 1941 no seu décimo volume. O nono e décimo (1939) volumes foram publicados após a morte de Trubetzkoy, em princípios de 1939, quando Viena foi invadida pelos nazistas. O novo volume é a obra póstuma de Trubetzkoy, escrita em alemão, e intitulada 'Princípios de Fonologia'.

O Círculo fez sua primeira aparição na Europa em 1928, durante o Primeiro Congresso Internacional de Lingüistas realizado em Haia. Neste congresso Jakobson, Karcevski e Trubetzkoy apresentaram uma comunicação na qual discutiam os métodos mais convenientes para uma descrição prática e completa da gramática de uma língua como ofereciam também, nessa oportunidade, o conceito de entidades lingüísticas ao qual haviam chegado em face da realidade física do discurso. Propuseram a criação de dois estudos distintos: a fonética, uma ciência natural, e a fonologia, uma parte lingüística que trata da significação dos traços fonéticos em uma língua. Essa comunicação, que é muito breve e que foi escrita por Jakobson em francês, enfatizava: 1) a necessidade de
"correlações fonológicas", isto é, do estabelecimento de um sistema de oposições de sons lingüisticamente significativos, de acordo com o princípio das oposições lingüísticas de Saussure; 2) a importância de partir dessas correlações para explicar a mudança fonética (uma idéia inteiramente nova que hoje tem sido intensamente desenvolvida, como veremos). Este segundo aspecto daquela comunicação visava a fonologia diacrônica; não foi levado em consideração, entretanto, no trabalho de Trubetzkoy, que permaneceu no nível sincrônico.

(Capítulo XXVII - O Conceito de Fonema. Baudouin de Courtenay, Saussure e o Círculo de Praga, Daniel Jones, Joaquim Mattoso Camara Jr.

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